(um ensaio)
1. INTRODUÇÃO
Considerando o contexto geral da arquitetura vem-me uma imagem que inicialmente abarca dois aspectos essenciais, que até poderiam, de um determinado ponto de vista, serem interpretados opostos entre si. Com o intuito de clarear o processo de desenvolvimento da criatividade de projetos arquitetônicos, proponho o aprofundamento quanto a seus conteúdos e também ampliação do debate sobre este tema. Podemos perceber na atualidade uma tendência, sua origem na discussão no meio arquitetônico, data de décadas atrás, que se preocupa com o discernimento analítico do processo projetual. Em resumo poderíamos caracterizar esta tendência com o ‘fazer da arte uma ciência’. De fato constatamos que grande parcela da atual produção arquitetônica de uma ou de outra forma aniquilou a arte de seu contexto. A arquitetura sempre foi considerada a mãe das artes, sem ela as outras não teriam o espaço necessário para suas manifestações, tal como o museu para as artes plásticas, o teatro para as artes cênicas, musica, ópera e dança e assim por diante. Em contrapartida podemos usufruir também de propostas em que a questão artística e todo o seu meio processual é abordada como fundamento para o desenvolvimento de qualidades correspondentes a ela. Busca-se esclarecer formas e critérios para o desenvolvimento de qualidades e capacidades profissionais que levam à criação no âmbito da arquitetura. No âmbito da ciência psicológica podemos também tomar conhecimento que o ser humano está dupla- e diretamente envolvido na questão em discussão. São Homens que projetam, são Homens os usuários e futuros usuários de todo e qualquer espaço construído. Sendo assim, com a intenção de nortear a conscientização da temática do título deste ensaio, poderíamos certamente resumir a complexidade do processo criativo em três itens básicos:
- a ciência
- a arte
- o Homem
Através da ciência temos acesso ao mensurável, às quantificações. O objetivo da ciência é de fato discernir, separar ou até discriminar para melhor compreensão do objeto de estudo. Em se tratando do processo projetual a análise meticulosa dos fatos que envolvem o problema inicialmente, é essencial para a posterior fase criativa. Dados numéricos, tamanhos de áreas e as somas totais, mas também o conhecimento técnico que envolve a execução da obra, engloba o escopo do item ciência. Para tal necessitamos e empregamos nossas capacidades racionais e intelectuais. Na ciência a criatividade leva às descobertas inusitadas, às invenções, que por sua vez resultam em tudo que conhecemos no âmbito da tecnologia.
Na arte por sua vez, precisamos despertar outras qualidades para termos acesso à questão da criatividade dentro de seu contexto. O Homem é por definição um ser criativo. Ele é criativo também nas realizações de suas ações. Ele não somente se expressa através da criatividade nas mais diversas áreas artísticas, mas também necessita do contexto artístico para o seu desenvolvimento pleno e condizente com sua natureza intrínseca. Confrontamo-nos aqui com a pergunta: Como podemos desenvolver sensibilidade artística e como podemos nos inserir no processo de criação das artes? Em se tratando do desenvolvimento de projetos arquitetônicos, qual seria o papel da capacidade criativa do profissional, qual seria o papel da arte? A arte tem uma dupla função: ela permeia o processo criativo, mas também é meio de expressão, portanto uma linguagem anímica entre obra e observador. A arte torna-se manifesto quando contemplada. A contemplação artística desvenda qualidades outras se comparadas às que adquirimos na análise científica.
O desenvolvimento de um projeto de arquitetura exige, por parte dos profissionais da área, no mínimo de um conhecimento básico da imagem do Homem. Só assim será possível atender às suas necessidades de bem estar e de desenvolvimento. É esta, a responsabilidade dos profissionais ligados à construção civil frente aos usuários de suas obras. De outro lado também é necessário clarear objetivos individuais dos profissionais da área para com a arquitetura e traçar caminhos que possibilitem inclusive as habilidades artísticas. Para o seu pleno desenvolvimento a arquitetura apela, por parte do arquiteto, à manifestação conjunta da arte e da ciência. J. W. Goethe expõe em um pensamento um possível elo entre a ciência e a arte: ‘Ao observarmos intensamente, de forma contemplativa um objeto da natureza dentro de seu contexto de vida, emerge da alma uma vontade irresistível de se expressar na arte’. Com a intenção de resgatar, de um lado, e onde presente, fortalecer a manifestação da arte na arquitetura, apresento em seguir proposta de processo de desenvolvimento de projeto que contempla a conscientização do processo criativo. Para sua melhor compreensão este processo pode ser pensado em três etapas, a formação de imagem, o desenvolvimento do projeto e a execução da obra. Quanto à última, ela não será abordada no contexto deste ensaio. É pertinente observar que não existe arquitetura no papel, na tela do computador. A arquitetura é obra concluída, executada. Se na execução da obra as decisões a serem tomadas considerarem o espírito da proposta projetual, evidentemente se agregará à qualidade final do contexto geral da referida obra arquitetônica.
2. FORMAÇÃO DE IMAGEM
Desenvolvido pelo ORTA-Atelier em Delft, Holanda, este processo antecede o projeto e tem como intuito ampliar a gama de subsídios e informações necessários para a criação no contexto arquitetônico. A análise e observação de dados (ciência), mas também a contemplação de fenômenos (arte) configura e permeia esta fase do processo. A idéia da formação de imagem se baseia também na preocupação de um envolvimento mais amplo e profundo por parte dos futuros usuários da obra no processo projetual arquitetônico. Não construímos para nós arquitetos, tão pouco para os críticos da arte e sim para pessoas que buscam no espaço construído, qualidades adicionais e de apoio ao desenvolvimento individual e social. É essencial a análise de questões práticas e de funcionalidade no sentido de atender às necessidades materiais dos usuários. Mas a arquitetura também pode abarcar qualidades estas, que se referem ao ambiente propriamente dito, ao volume em relação ao seu entorno, sempre em relação, e estabelecendo sua identificação quanto à função e seu contexto. Visando possibilitar o levantamento destes conteúdos que fomentam o projeto arquitetônico propõem-se reuniões de trabalho entre os projetistas e futuros usuários abordando os seguintes temas:
-qualidade de ambiente: É necessária e pertinente a participação ativa dos envolvidos no processo. Este tema consiste em caracterizar e descrever o ambiente interno evitando-se a contribuição de propostas de soluções arquitetônicas ou representações empáticas quanto às definições de espaços. É oportuna a comparação de ambientes para melhor caracteriza-los. Norteia a evolução do tema, a busca de imagens que caracterizam qualidades de ambientes que apóiem o bem estar individual e social. Assim também fazem parte deste escopo as qualidades que estimulam a atividade a ser exercida no futuro espaço. O engajamento individual no processo é essencial mesmo existindo as vezes, por parte de alguns participantes certa inibição quanto às suas expressões de vivências e experiências. O objetivo básico consiste em caracterizar conjuntamente, sempre com orientação do arquiteto, os ambientes ainda não materializados.
-quantificação e prática de uso: Este tema se assemelha às reuniões iniciais que todos nós conhecemos, entre cliente e arquiteto. A análise visa a medida e tamanho de áreas, partindo do uso (praticidade) dos futuros espaços. São abordadas as questões que tratam das atividades do ponto de vista prático e o sequenciamento das mesmas classificando e ordenando os fatores mensuráveis do contexto da futura obra. Em situações complexas esta fase pode ser estendida e complementada com a participação de outros profissionais da área para discernimento de processos e fatores paralelos. O objetivo deste levantamento é o programa de áreas, o organograma e similares que delimitam e definem as questões práticas de uso, visando sempre otimização de desempenho da futura obra.
-biografia da moradia Toda pessoa adulta provida de maturidade civil teve inúmeras experiências com o espaço construído, a arquitetura e no contexto maior, o urbanismo. Visto a tipologia da obra a ser projetada estas experiências, as mais significativas, podem contribuir e complementar a imagem da futura obra. São as experiências inusitadas, as especificas que muitas vezes caracterizam uma relação que temos por natureza com a arquitetura. Estas vivências podem ser consideradas e fomentam a substância que servirá como fonte de inspiração do futuro projeto.
-fenomenologia do entorno Cada lugar, cada sítio tem sua característica intrínseca. A região montanhosa da Serra, o cerrado paulista, a Mata Atlântica o litoral, mas também regiões urbanas, o contexto de uma rua, enfim qualquer que seja o terreno, sua configuração, as relações existentes em seu entorno e a qualidade própria do lugar, podem incrementar a imagem que fundamenta o partido do projeto. Também na abordagem deste tema, é de suma importância a colocação e contribuição individual dos participantes, tomando sempre como base à contemplação de fenômenos existentes no terreno e seu arredor. Por que a escolha deste local? Qual é a ligação que tenho com o local? Na atitude artística damos condições diferenciadas de diálogo, de relacionamento. Partindo das características do terreno questionar um eventual gesto, os movimentos e as proporções do futuro volume a ser inserido no terreno.
Assim encerra-se, em termos gerais, o processo de formação de imagem. Alem das conversas de forma contributiva (sem a intenção de medir a força de convencimento de idéias), métodos não verbais, como desenhos ou até trabalhos em argila enriquecem a formação de imagem. Até este momento ainda não existe delimitação definitiva de soluções arquitetônicas. Tem-se como resultado de pesquisa relatórios de dimensionamento de áreas, organogramas e as delimitações e restrições referentes ao terreno. Paralelamente percebe-se como fruto do processo uma imagem conjunta que caracteriza em qualidades, ambientes e volume, que futuramente pode ser materializada em arquitetura. Este processo também propiciou condições para que o arquiteto possa adentrar na situação particular do usuário, e este por sua vez compartilhar com o processo criativo da arquitetura.
Em situações de projetos em áreas urbanas o arquiteto inicia, paralelamente ao processo de formação de imagem, analise e levantamento de restrições, ocupação de solo e demais questões legais que se referem à situação em questão. Estas e outras responsabilidades do profissional envolvido no processo não fazem parte do escopo desta proposta de trabalho por serem consideradas necessárias, independentemente do encaminhamento dado ao projeto. Quanto às situações de empreendimentos mais complexos pressupõem-se a participação ativa também de outros profissionais, tanto no processo de formação de imagem como também no desenvolvimento do projeto propriamente dito.
3. DESENVOLVIMENTO DE PROJETO
Uma vez encerrada a fase de formação de imagem dá-se inicio ao desenvolvimento do projeto de arquitetura. Durante este processo existe uma troca constante de informações, idéias e definições arquitetônicas, sempre respaldadas no conteúdo intrínseco resultante da formação de imagem. A participação do usuário é ativa também nesta fase. Em termos gerais caracteriza-se um desvendar da arquitetura em etapas. O inicio é o que denominamos de partido, ou idéia básica do projeto. A seqüência de etapas depende do projeto. Existe porem sempre alternâncias entre estudos no papel, em forma de croquis e estudos tridimensionais, em argila, plastilina ou cartolina. Paulatinamente o projeto emerge da substancia adquirida no processo de formação de imagem. De etapa para etapa os contornos do volume definem-se, a planta baixa adquire forma e gesto, atendendo às exigências práticas e qualitativas dos ambientes propostos. As fotos abaixo esclarecem o contexto deste trabalho até a fase do anteprojeto.
4. CONCLUSÃO
Para desvendar o mistério da criação da arte pelo homem é necessário deslocarmos a nossa observação e abordagem de conhecimento, predominantemente racional e analítico. Nas palavras de Antoine de Saint-Exupéri em seu livro O Pequeno Príncipe: ‘Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos‘. O que de fato está sendo solicitado para adquirirmos a compreensão mais ampla e profunda do tema deste ensaio é uma real vivencia da arte e concomitantemente o desenvolvimento de sensibilidade e capacitação artística. Isto somente é possível no fazer, na ação que resulta em arte. A ciência leva o homem ao conhecimento. Porem, ela tem suas limitações. Neste contexto J. W. Goethe escreve: ‘A arte é conhecimento, pois todos as outras formas de conhecimento, tomadas em conjunto, não constituem um conhecimento completo do mundo, arte, -criatividade- deve ser adicionada ao que é conhecido abstratamente (ciência) se quisermos atingir um conhecimento universal’. Na atividade artística percebemos que não somente os sentidos e o pensar são ferramentas para adquirir conhecimento, mas que também as mãos, que de fato criam, são permeadas de sabedoria, de inteligência, qual necessária para todo processo criativo. A semente de um vegetal condensa dentro de um espaço minúsculo, forma e beleza, que pode ser desvendada depositando-a na terra. A idéia contida na semente se manifesta ao ser plantada. A força expressa no crescimento e desenvolvimento desta planta se assemelha às forças necessárias na criação da arte, no desvendar de uma idéia em forma, organização e estruturação. V. Setzer em seu ensaio, O Computador como Instrumento de Anti-Arte, declara: ‘A ciência é idéia tornada conceito, a arte é idéia tornada objeto. Ambas têm a mesma origem, a primeira é assimilada pelo pensamento, a segunda vivenciada pelos sentidos’. A arquitetura ora precisa da abordagem cientifica, ora da artística para que ela possa manifestar-se em sua plena magnitude.
5. BIBLIOGRAFIA
- Organische Architectuur / Pieter van der Ree / Uitgeverij Vrij Geestesleven, Zeist, 2.000
- Kinderen em Wonen / Frank Sturkenboom em Angela Raanhuis / NCIV, de Bilt, 1987
- O COMPUTADOR COMO INSTRUMENTO DE ANTI-ARTE, Valdemar W. Setzer, Departamento de Ciência da Computação, instituto de Matemática e Estatística da USP