É vedada a cópia de qualquer parte do material para uso comercial, mas que para finalidades científicas,
culturais e técnicas poder-se-á copiar partes, desde que solicitado ao autor e citando explicitamente a fonte.
IV - O CHARME DO ÚTIL
"Form follows function"
(A forma segue à função)
Louis Sullivan
"La maison est une machine à habiter"
(A casa é uma máquina para habitar)
Le Corbusier
Na vida moderna, a maior parte das nossas preocupações e atividades são de natureza
prática. Estas invadem constantemente, com a sua exigência da realidade sóbria, a
arquitetura e tudo o que se constrói. A vida moderna exige apartamentos, escritórios,
fábricas. Raramente se chega à realização de um centro cultural ou teatro. E menos
ainda a presença de outras artes plásticas!
Em Dornach, a partir de 1914, esta situação não era muito diferente. O Goetheanum era
um destes casos raros, e um dos mais destacados da época. Por outro lado, o número
crescente de pessoas ligadas à antroposofia residentes em Dornach, precisavam cada vez
mais de espaços utilitários e, sobretudo, habitacionais.
O desafio era significativo. Seria a nova arquitetura e seu impulso cultural-artístico
iniciados com o Goetheanum capazes de tomar conta das coisas práticas? Por um lado,
havia o perigo de se encontrarem soluções de mentalidade tecnocrata ou convencional,
sem referência a Antroposofia, Por outro lado, o risco de se criar a volta do edifício
principal, um conglomerado de casas particulares, individualistas, cada uma à sua
maneira. Graças à insistência de Rudolf Steiner, aliadas à visão de algumas pessoas que
lhe pediram o projeto ou a maquete, se conseguiu evitar estas situações.
Nasceu assim, ao longo dos anos, uma dúzia de obras de médias e pequenas dimensões,
em Dornach, que nos mostram um outro lado da criatividade arquitetônica do seu autor.
Cada uma destas obras manifesta, a sua maneira, dois princípios básicos.
Por um lado qualquer edifício petencente ao conjunto físico e espiritual do Goetheanum,
refletia e expressava esse relacionamento, ou seja, os seus volumes, o seu caráter era
uma metamorfose do edifício principal. Esta metamorfose é ao mesmo tempo uma
adaptação ao ambiente físico: a topografia, a posição mais ou menos elevada no
território, e a sua relação espacial com o Goetheanum.
Por outro lado, cada uma destas obras precisava ter uma fisionomia própria,
características individuais, que, mais uma vez, não seriam baseadas na Arte pela Arte, no
prazer de se fazer coisas bonitas, ou interessantes, seriam a expressão da sua função e
do seu uso prático.
Na confluência destes dois fatores principais, surge a formalização de cada um destes
edifícios. Não há um código formal imposto por fora, seguido rigidamente. Veremos
nestes poucos exemplos, qual é a natureza do funcionalismo orgânico de Rudolf Steiner,
manifestado nestes edifícios simples e em escala pequena. A apresentação é mais ou
menos cronológica, não incluindo, portanto, dois projetos, um em Stuttgart (Alemanha),
outro na vila vizinha de Arlesheim. É importante de realçar que Rudolf Steiner costumava
indicar, apenas as idéias básicas, por meio de desenhos ou maquete, e, às vezes alguns
pormenores. O resto do projeto e a sua execução ficava ao encargo da equipe de
arquitetos.
A primeira destas obras, inaugurada em 17 de junho de 1914, é o atelier das gravuras de
vidro - daí as janelas em tríptico, que repetem, exatamente, as do Goetheanum.
Apresentam-se, simetricamente, dois volumes cilíndricos, encimados por cúpulas, que
definem o espaço dos ateliês - e entre eles um terceiro volume, de fonte convexa, com a
entrada no meio. Tudo é revestido de madeira, e tem belas e harmoniosas proporções.
Tentando reconstruir o processo de metamorfose que aconteceu, podemos constatar que
as duas cúpulas do edifício principal se afastaram, e ao abdicarem da interpenetração
ficaram iguais. Um detalhe curioso é o puxador da porta de entrada, em ferro, anguloso,
desconfortável e anticonvencional. Quem quer entrar tem que quebrar a rotina dos
movimentos habituais, fazendo um esforço de consciência!
A segunda destas obras é o "Heizhaus", a espetacular central de calefação. Rudolf
Steiner tinha insistido que o equipamento que aquece o Goetheanum no longo inverno
suíço, e que devora toneladas de carvão, deveria ser colocado fora. O que fazer? Uma
simples chaminé de fábrica, cilíndrica, um edifício de caráter industrial? Ou uma
arquitetura de fachada, embelezadora, cujo exterior disfarce o que está lá dentro?
A solução, que se encontrou para este problema difícil, é corajosa e expressiva. As duas
cúpulas, sempre afastadas e iguais, são pequenas, quase rudimentares. Acima delas
levanta-se, dinamicamente, a chaminé com pares de duas protuberâncias laterais, que
conjugam grande vigor plástico, com delicadeza de modulação duma forma à outra,
dando a quem vê prazer sutil. Sem o fumo a elevar-se no céu, este quadro seria
incompleto, assim frisou Rudolf Steiner repetidas vezes. Porquê? A resposta obtém-se
de uma simples observação: fumo, ao elevar-se, desvia-se sempre lateralmente, em
espirais e voltas. Uma planta cresce do mesmo modo para cima, e para os lados, menos
o monótono aspargo.
A expressividade do "Heizhaus" transmite algo real; fumo e concreto fazem a mesma
coisa. Os processos de combustão, o intenso calor, a pressão da água quase vaporizada,
as energias em jogo, assumem escala assustadora, em que o papel do homem se reduz
ao controle das máquinas. Esta situação não pede uma arquitetura bonita, acolhedora. O
gesto, um tanto estranho, dos degraus da entrada, das molduras das janelas nos faz
sentir este ambiente dominado pela máquina. O "Heizhaus" procura, em todos os seus
pormenores, dizer a verdade sobre si próprio, a sua razão de ser, sem disfarçar ou
ocultar. A meta desta arte de expressividade verdadeira é humanizar um processo
técnico, morto, infra-humano.
Muitos já observaram que o "Heizhaus", na sua postura de repouso, com as cúpulas
rudimentares a fazerem de patas, tem algo da enigmática Esfinge da antigüidade. Seu
desafio aos caminhantes era, sob ameaça de morte, para que reconhecessem a própria
natureza humana... Será que esta Esfinge em concreto armado, nos desafia a um melhor
reconhecimento da natureza técnica, e o seu lugar na vida moderna?
De resto, a linguagem formal do "Heizhaus" não podia ter sido realizada sem o concreto
armado, e sem um excelente domínio deste material, que na época era o mais moderno
que havia.
A próxima obra (1915-16) a ser realizada era a casa "Duldeck", residência do doador do
terreno em Dornach. Está situada perto da entrada principal, no oeste, do Goetheanum.
Aqui a linguagem dinamizada, fluente e escultural dos volumes é dominante.
Evidentemente, o instrumento principal do processo de projetar era a maquete em
plasticina, e não o desenho. Há um jogo complexo de concavidades e convexidades,
reentrâncias e saliências, que transforma completamente os volumes básicos do
Goetheanum, deixando ficar apenas rudimentos semicirculares das referidas cúpulas, nas
duas fachadas principais. O historiador Dennis Sharp considera o "Duldeck" o edifício
mais bem sucedido do expressionismo.
Em 1920, foram realizadas as casa Blommestein e Vreede, mais distantes do
Goetheanum. Em 1921 seguiu a casa De Jaager para a família de um escultor recemfalecido.
Dois volumes configuram esta casa. Um é o atelier-museu, altivo, anguloso, de
tendências côncavas, cor avermelhada, quase sem janelas. O outro é a habitação, mais
baixa, de tendências convexas, de cor azulada, e com muitas janelas. O aspecto
funcional - a dualidade atelier- habitação, e a metamorfose do motivo da copila dupla,
coincidem e encontram expressão na polaridade dos dois volumes, distintamente
caracterizados.
No mesmo ano, perto da casa De Jaager foi construído um grupo de três residências
pequenas e quase idênticas, para euritmistas. O seu posicionamento é interessante. Duas
estão paralelas, embora não alineadas, a terceira desvia-se segundo um ângulo. O que
caracteriza estas casas são eixos cruzados de simetria, uma metamorfose da planta
crucíforme do Goetheanum, o zig-zag das abas que parece irradiar em todas as direções.
Também neste ano, foi construído um prédio com transformadores para o abastecimento
elétrico da zona. A companhia local de eletricidade tinha proposto uma solução
convencional, disfarçada de chalet suíço, ou de campanário de igreja... Mais uma vez
Rudolf Steiner empenhou-se a responder ao desafio de encontrar a solução apropriada.
Como no caso do "Heizhaus", tratava-se de evitar tanto o disfarce (que nega o elemento
técnico), como simplesmente, a construção técnica (que nega o fator humano).
No "Heizhaus", o processo de vapor, de fogo, de fumo, derivados dos fenômenos
elementares, que nos rodeiam diariamente, são acessíveis ao sentir humano. No caso da
eletricidade, ou sua transformação, é diferente. A energia que passa, duma bobina para a
outra, muda de voltagem, num choque abrupto, sem qualquer transição, o que nem
merece o nome de "processo". De resto, a única coisa que podemos sentir, diretamente,
são os choques elétricos, que pouco nos dizem sobre o que é, no fundo, a eletricidade.
Só nos confirmam que se trata de algo extremamente alheio a natureza humana, de
características mortas e abstratas, apenas controlável por máquinas.
O que fazer com tudo isso? Como criar a linguagem formal que expressa a essência de
eletricidade, tornando-a, ao mesmo tempo, aceitável dentro do contexto dum ambiente
arquitetônico?
O edifício realizado é pequeno, de proporções muito verticais, composto de vários
volumes exclusivamente cúbicos, de planta retangular. Não há nada de redondo ou de
escultural, só aqueles volumes austeros e a composição que os interliga. O corpo
principal sofre uma espécie de ruptura pouco acima do meio, aparecendo a parte superior
virada a 90 graus, em relação a inferior. Em cima, há quatro pequenos volumes,
salientes, agarrados ao corpo central, dos quais os fios elétricos saem para os diversos
lados. Quatro? Outra leitura possível, seria falar em apenas dois volumes compridos cuja
interpenetração cruciforme fica escondida no volume central. Seja como for, o equilíbrio
parece precário e um pouco desconfortável.
Ao sensibilizar-nos para esta linguagem, sentimos justamente as qualidades que a
própria eletricidade tem, o abstrato, o abrupto, o unânime. As formas falam de
eletricidade, expressam eletricidade. Mesmo assim, o aspecto não deixa de agradar ao
sentido estético, não nos apresenta um monstro técnico. Pelo contrário, o jogo de
volumes e proporções maiores e menores é de grande brilho e originalidade.
O prédio para os transformadores e o "Heizhaus" ensinam-nos com clareza como Rudolf
Steiner vislumbrava a arquitetura técnica. Ser verdadeira (expressar sem falsos
embelezamentos a natureza ahrimanica, subumana dos processos técnicos) e ser bela (
dar uma qualidade estética notável mesmo àquilo que muita vez nunca sai das mãos dos
tecnocratas). Assim o antagonismo entre o domínio técnico e humano é ultrapassado. O
nocivo na técnica, adversário ou alheio às qualidades, propriamente humanas, é
neutralizado se tornando visível, e redimido tendo uma forma estética. A arte cria a
ponte entre técnica e a cultura em geral, duas esferas que, ainda hoje temos dificuldade
em ligar.
O próximo projeto de Rudolf Steiner era a ampliação da residência "Brodbeck", em 1923,
criando uma sala de Euritmia e um atelier. A linguagem arquitetônica escultural alcança
nova dimensão. Na casa "Duldeck", a sutileza de muitos pormenores é admirável. As
faces planas, convexas ou côncavas, organizam-se em gestos muito diferenciados,
sobretudo em certos elementos, cautelosamente estudados, como a entrada ou as
chaminés. Na casa "Brodbeck" tudo é simplificado e resume a sua expressividade em
traços largos e generosos de grande vigor. Dois pilares livres destacam-se da fachada e
são unidos ao corpo central na zona da cornija e telhado. Este motivo antecipa os pilares
monumentais da fachada ocidental do futuro 2o. Goetheanum.
No inverno seguinte (1923-24), foi planejado e construído, dentro de poucas semanas,
um pequeno armazém de livros para a editora antroposófica. A planta é retangular, de
cantos chanfrados, o telhado poligonal-cristalino. Três lados são completamente
fechados, o quarto apresenta as janelas e uma grande reentrância com a porta,
oferecendo abrigo para cargas e descargas. O gesto é pesado, agarrado ao chão, e à
primeira vista pouco atraente...até se descobrir, mais uma vez, a harmonia entre uso,
função, e gesto formal. O projeto de um depósito, um armazém pede uma qualidade de
peso, fechado sobre si próprio, e são estas as qualidades que caracterizam o pequeno
edifício.
Quem colocou as estacas para o posicionamento da obra, entre "Heizhaus" e o atelier das
gravuras de vidro, foi o próprio Rudolf Steiner, sacrificando uma hora no seu horário
repleto para o trabalho que lhe parecia importante.
A última destas obras é a casa para o músico Max Schuurman, a única situada a um nível
mais elevado que o Goetheanum, e atrás deste, na encosta adjacente, ao leste. A
simplicidade do projeto é surpreendente, de planta e janelas rigorosamente retangulares.
As arestas das quatro águas do telhado são articuladas por pequenos destaques em
forma de cunha, que lhe dá uma leveza sutil e elegante. O único outro elemento, fora do
ângulo reto é o arco do nicho da entrada, cuja forma é uma resposta orgânica ao
contorno do beiral.
Durante os últimos meses da vida de Rudolf Steiner, em 1924-25, foi construída esta
casa, à qual ele atribuía grande importância - como tudo indica - quer na posição, quer
na formalização simplificada, que reduz a linguagem orgânica ao essencial e
imprescindível. Parece enigmático, à primeira vista, o porquê de tanta estima atribuída
pelo arquiteto dos dois Goetheanum, do "Heizhaus", etc., mas olhando para o contexto
global de sua obra, uma resposta se revela.
Um aspecto é - esperemos que o leitor já tenha descoberto isso - Rudolf Steiner não
opera com linguagens formais preconcebidas. Mais do que uma vez, ele chega a
resultados formais muito diferentes ou até polarmente opostos. Para edifícios de uso
semelhante, um exemplo são as casas "Duldeck" e "Schuurman", ambas residências, e
ambas concebidas organicamente. Outro exemplo é o "Heizhaus" e o prédio dos
transformadores, ambos de uso meramente técnico - e finalmente o primeiro e o
segundo Goetheanum. O orgânico é uma abordagem ao projeto que procura expressar a
função, o ambiente físico, o gênio do lugar numa linguagem arquitetônica entendida
como unidade, organismo, e não como uma mera adição ou composição de elementos
arquitetônicos. O orgânico não é um vocabulário formal preconcebido, que a priori
escolhe uma forma e rejeita outra. A melhor prova disso é a polaridade "Schuurman" -
"Duldeck" ou a transformação total que ocorreu entre o primeiro e o segundo
Goetheanum. A linguagem formal é total, incluindo tudo o que na época era
tecnicamente possível: o cúbico, o cristalino, a linha curva, a superfície plana, convexa ou
côncava, o geométrico bem como o escultural - e os que dizem que Rudolf Steiner
evitava ângulos retos, por algum motivo metafísico, simplesmente não levaram a sua
observação até o fim, e não reconhecem o que para todos está a vista. - A modesta casa
"Schuurman" é, portanto, um elemento fundamental neste contexto.
O segundo aspecto tem a ver com a integração no terreno e o relacionamento com o
edifício principal. Só com a casa "Schuurman" fecha-se o anel de edifícios pequenos que
circunda o Goetheanum a Este, Oeste, Norte e Sul. Além disso, em 1924 e 1925 o
segundo Goetheanum já estava em fase de planejamento, o caráter de bloco do seu
volume oriental era nitidamente definido. A casa "Schuurman" a reflete própria um bloco,
liga-se assim a parte do Goetheanum que lhe esta adjacente. Percorrendo a zona oriental
do terreno e tendo as duas construções em vista, ambas viradas para o poente, nota-se
que o gesto sutil, cauteloso do telhado da casa "Schuurman", em que quase se presente
o suave bater de asas, dá uma resposta muito feliz ao gesto poderoso dos "braços"
laterais do Goetheanum.
De modo semelhante, podemos ver que há laços orgânicos também com os outros
edifícios, que refletem certas qualidades volumétricas ou plásticas, seja do primeiro, seja
do segundo Goetheanum, como se fosse uma projeção delas lá para fora, no espaço
paisagístico. A questão da metamorfose volumétrica entre um edifício e o outro, está
intimamente ligada à questão do seu posicionamento. Quais são, por exemplo, os
edifícios que têm reminiscências mais nítidas do motivo da cúpula dupla, ou seja, da
dualidade de volumes? Os que se situam ao lado do Goetheanum, lá onde esta dualidade
se vê melhor: o atelier das gravuras de vidro, o "Heizhaus", e a casa De Jaager. Que
edifícios têm a maior expressividade plástica? As duas casa adjacentes à parte ocidental
do Goetheanum: Duldeck e Brodbeck. No primeiro Goetheanum, a diferença de
imponência entre fachada principal, ocidental e as fachadas laterais, ao norte e ao sul,
ainda é moderada, dosada. No segundo, o dinamismo plástico da parte ocidental
intensifica-se muito, e as referidas casas são um reflexo disso.
É interessante notar que todos estes edifícios pequenos estão virados com a sua face
principal para o Goetheanum, mas nunca num rigor geométrico absoluto, sempre
tomando a liberdade de uma pequena divergência lateral de ângulo.
Arquitetura utilitária e orgânica: os exemplos que Rudolf Steiner deixou são poucos e
modestos, mas a substância e a abordagem neles implícitas são inspiradores para
arquitetos até hoje.