Arquitetura Antroposófica
AS ARTES PLÁSTICAS E O DESENVOLVIMENTO DA ALMA HUMANA
Michael Moesch, arquiteto
Iniciada por Rudolf Steiner no início deste século, Arquitetura Antroposófica tem um
parentesco com o termo Arquitetura Orgânica, um conceito hoje utilizado no mundo todo.
Rudolf Steiner atuou como arquiteto em uma época em que artistas plásticos, principalmente
na Europa e nos Estados Unidos, buscavam uma expressão nova para suas produções.
Inicialmente, nos anos 20 deste século, com a obra do primeiro Goetheanum em Dornach, ele
desenvolveu um conceito arquitetônico amplo, expressando a organicidade do volume do
edifício, e obtendo, desta forma, uma linguagem artística incomum para a arquitetura da
época. Se comparada com o grande leque que atualmente classifica a Arquitetura Orgânica,
quais seriam as características desta proposta antroposófica?
1- Arquitetura Orgânica
2- Integração das artes plásticas
3- O princípio da metamorfose
4- A expressão arquitetônica do espaço
1- Arquitetura Orgânica
Muitos arquitetos buscam a expressão orgânica na arquitetura. Este conceito está
relacionado ao termo organismo. Chamamos organismo tudo que tem vida, desde os seres
mais primitivos unicelulares, através dos vegetais e animais, até a complexidade do ser
humano. O que é um organismo? Quando podemos denominar algo como sendo um
organismo? Quando possui vida, quando está em processo, ou seja, cresce e se mexe por
força própria. Tanto o crescer como o mexer podem ser enquadrados em um único conceito -
movimento. A Arquitetura Orgânica procura sua expressão nesta característica da vida - o
movimento. Existe, porém, um relacionamento mais íntimo entre a Arquitetura Orgânica e a
vida. Como se caracterizam as formas de um organismo? Se observarmos um cristal de rocha,
por exemplo, uma composição de planos, arestas e superfícies lapidadas, podemos perceber
nítidas diferenças entre suas formas, se comparadas com um vegetal. Em vez de planos retos,
o vegetal mostra uma composição de convexidades e concavidades unidas e emendadas por
curvas. Estas formas são inerentes à vida. Mas o que é vida? Um seixo de rio também possui
formas redondas. Estas são resultantes do desgaste sofrido no percurso no leito do rio e da
erosão contínua da água. É uma ação externa na superfície da pedra. No organismo vivo, a
ação do processo que origina as formas que o caracterizam é interna. Um processo, seja ele
externo ou interno, sempre se manifesta no tempo. O tempo é um fator fundamental na
formação do ser vivo. Mas o ser vivo também precisa da matéria para sua estruturação. O que
é a matéria? Em sua essência, ela é superfície. A composição e configuração de suas
superfícies determinam um espaço. A matéria é inerente ao espaço. Tempo e espaço formam
o alicerce para a manifestação da vida. Já vimos anteriormente, no exemplo do seixo de rio,
que a incidência do tempo na matéria, no espaço, é externa, de fora para dentro. Invertendo
este processo de ação, a incidência do tempo no espaço de dentro para fora, leva-nos ao
conceito de vida. O entrelaçar de tempo e espaço de dentro para fora tem como resultado a
vida. A tentativa do arquiteto que se identifica com a Arquitetura Orgânica é buscar na sua
forma de expressão a integração de tempo e espaço. O resultado é o movimento, é o
dinamismo na composição dos espaços. Ao usuário, esta arquitetura propicia o bem estar e
questões relacionadas à vida, apoiando e incentivando os processos vitais.
De um outro ponto de vista, ainda temos a questão estrutural do organismo. No
organismo vivo podemos distinguir características estruturais que não encontramos no reino
mineral. Podemos subdividir o vegetal em membros distintos um do outro: a raiz, o caule e a
folha. A raiz, uma das extremidades do vegetal, prende-se à terra apresentando
características formais diferentes da folha, voltada para cima, direcionada à luz. Algo
semelhante encontramos no reino animal com a seqü.ncia formal de cabeça, tronco e
membros. Esta diferenciação estrutural do organismo vivo não se manifesta no reino mineral.
A Arquitetura Orgânica, observada em detalhes, apresenta-se com elementos de
características formais distintas, como frente, meio e fundo. De outro ângulo, distinguem-se
as lateralidades ou a expressão formal da base da obra, em contraste com a sua cobertura.
Resumindo, poderíamos concluir: a questão ligada ao fenômeno “vida” e a estruturação que
caracteriza um organismo vivo, definem este primeiro tema da Arquitetura Orgânica.
2- Integração das artes plásticas
No início deste século, a integração das artes plásticas era um tema que preocupava
muitos artistas, como pintores, escultores e arquitetos. Rudolf Steiner, em sua grande obra, o
primeiro Goetheanum, fez do edifício uma obra-de-arte total. Arquitetos, escultores e pintores
participaram no desenvolvimento do projeto e na execução desta obra: um auditório e palco,
destinado às atividades da Sociedade Antroposófica em Dornach, na Suíça. Rudolf Steiner
enfatizou, em várias apresentações de seus projetos e palestras, que a arquitetura é a “mãe”
de todas as artes, pois sem ela jamais teríamos condições para abrigar a arte da pintura ou
objetos de escultura, e tampouco teríamos o espaço necessário para a manifestação da arte,
da música e dança. Nestas condições, um partido projetual pode ser elaborado utilizando-se
da rica linguagem que cada segmento da arte consagrou separadamente no decorrer dos
tempos. Com a integração das artes, a obra adquire um brilho especial quanto à sua
expressão. Rudolf Steiner falou neste contexto da obra dialógica, que se comunica com o
usuário.
3- O princípio da metamorfose
Esta sim é uma busca exclusiva da Arquitetura Antroposófica. Rudolf Steiner, quando
jovem, pesquisou durante vários anos os trabalhos científicos de Goethe, principalmente
aqueles que tratam da metamorfose das plantas. Goethe observou no vegetal, independente
da espécie e família, um princípio formal próprio de cada planta. Ele observou que o contorno,
a forma da folha da planta dá origem à forma das pétalas da flor, à forma da semente, à
forma do broto e assim por diante. A seqü.ncia de formas entre as diferentes fases de
crescimento do vegetal são características exclusivas daquela planta. Baseado nestes estudos,
Rudolf Steiner chegou à idéia do princípio da metamorfose da forma. Em suas obras
arquitetônicas, podemos distinguir a metamorfose da expressão formal do detalhe e dos
elementos esculturais, a metamorfose dos espaços na planta baixa e a metamorfose dos
volumes no contexto urbanístico. A seqü.ncia das formas dos elementos arquitetônicos parte
de um princípio formal único, evidenciando um relacionamento mútuo entre parte e todo.
Assim, podemos observar no primeiro Goetheanum, parentescos entre a formas que compõem
as janelas e portas, e estas, por sua vez, têm semelhanças com elementos da cobertura e do
telhado, assegurando através da transformação em seqü.ncia, a familiaridade entre os
detalhes.
Na Arquitetura Antroposófica, vinculada à metamorfose da forma, podemos ainda
constatar um partido formal que expressa nos detalhes, a ação das forças em conseqü.ncia
das cargas do material. Existe neste contexto uma inversão quanto à expressão artística, se
comparada com a arquitetura moderna contemporânea. Toda obra arquitetônica está sujeita a
cargas resultantes do peso próprio do material, da ação de vento e chuva, do deslocamento de
pessoas, entre outras. Em elementos estruturais como pilares e vigas, por exemplo, a
arquitetura moderna utiliza-se de materiais específicos, de acordo com o tipo de força
empregada no sistema. Na predominância de forças de tração, o material aplicado é o aço ou
o ferro, com uma área pequena de sustentação. Em situações onde há a predominância de
forças de pressão, o material aplicado é a pedra ou o concreto, com áreas grandes de
sustentação. Na Arquitetura Antroposófica, no entanto, busca-se expressar o que realmente
ocorre dentro do material quando sujeito a forças externas. Onde, na estrutura, atuam forças
de tração, com a tendência de separação no material, busca-se uma expressão de união com
o acúmulo de matéria. Em conseqü.ncia, onde, na estrutura, atuam forças de pressão, o
material é pressionado, mas o esforço nele é de separação. Neste caso, a expressão é esbelta,
é refinada.
4- A expressão arquitetônica do espaço
Este tema refere-se à busca da compreensão, cada vez mais aprimorada, da atuação
da expressão arquitetônica na alma do ser humano. É uma característica quase que exclusiva
da Arquitetura Antroposófica. A questão da relação entre a qualidade do espaço e sua função,
ou seja, a atividade nela exercida, foi amplamente debatida nos primórdios da arte moderna.
Atualmente, os arquitetos em geral reduziram a função do espaço ao tamanho necessário, à
iluminação e ventilação necessárias, enfim, exclusivamente aos elementos mensuráveis,
deixando de lado a qualidade intrínseca do ambiente arquitetônico. Não se distingue mais a
diferença entre uma sala de aula de uma escola do primeiro grau e um escritório de um prédio
comercial. Ambos os espaços têm sua composição baseada no retângulo ou no quadrado, com
paredes paralelas e ângulos retos. Na Arquitetura Antroposófica, podemos observar a busca de
uma relação da qualidade do ambiente com a atividade desempenhada no referido espaço.
Esta preocupação evidencia a consciência da qualidade do espaço, pois sabe-se que
independente da forma, seja ela ortogonal ou orgânica, toda composição exerce uma
influência no usuário. Mas como podemos conhecer e nos aprofundar quanto à influência do
espaço na alma humana? Rudolf Steiner tomou como partido para o auditório do segundo
Goetheanum o trapézio como forma de espaço em planta baixa. As paredes laterais divergem
em direção ao palco e convergem no sentido contrário. Até então, a forma destes espaços era
retangular ou, no caso do primeiro Goetheanum, circular. A forma do auditório do segundo
Goetheanum está intimamente ligada ao conteúdo antroposófico. Rudolf Steiner pouco falou
desta forma trapezoidal, mencionando apenas que o conceito de liberdade expresso na dupla
cúpula do primeiro Goetheanum está intrínseco na forma do auditório novo. Pesquisas
posteriores mostram que não só a liberdade, mas também questões relacionadas à
individualidade do ser humano estão presentes na forma trapezoidal. Se imaginarmos o
interior do espaço, direcionado ao palco, com as paredes laterais divergindo, afastando-se
uma da outra, poderemos sentir a liberdade que este movimento lateral propicia. Esta
abertura em direção ao palco não coloca o espetáculo realizado como imposição. As paredes
laterais divergem e abrangem fora do ambiente um espaço que aumenta e cresce quanto mais
nos distanciamos do ponto de observação. Este gesto abrange o mundo, e dentro do espaço
oferece ao espectador a liberdade para a concentração ou a dispersão. Em conseqü.ncia, a
partir do palco, o palestrante ou o ator estarão situados num espaço cujas paredes laterais
convergem, e fora do ambiente afluem a um único ponto. O ponto é uma unidade distinta e,
representando o indiviso, diz respeito a uma só pessoa, à individualidade. Do palco, em
direção à platéia, podemos sentir o apelo no gesto das paredes laterais para alcançar, para
atender a individualidade presente no auditório. O espectador, voltado ao palco, tem como
pano de fundo as paredes convergentes. Este gesto faz reconhecer as qualidades peculiares e
genuínas da pessoa, apelam ao indiviso, fortalecendo a atitude e a postura da individualidade
que está voltada ao espaço que abrange o mundo. Podemos concluir que o trapézio é um
espaço que coloca a pessoa entre o indiviso e o abrangente. Ele apóia o fortalecimento e a
consciência da individualidade, apela ao autoconhecimento, mas sempre resguardando plena
liberdade.
A arquitetura antroposófica, no contexto histórico
Rudolf Steiner: “É uma característica da alma humana expandir-se, alastrar-se,
desabrochar-se em todas as direções. A maneira de se desabrochar, a maneira como ela
deseja alastrar o seu ser no cosmo tem como resultado a forma arquitetônica”.
Historicamente, sempre existiu um relacionamento entre as artes plásticas com as fases do
desenvolvimento da alma humana. Desse relacionamento, três momentos se destacam na
História. Na Antiga Grécia, época da construção dos templos, deparamo-nos com um pensar
imaginativo, um pensar mitológico. Uma observação de um fenômeno natural desencadeava
imagens na alma. A matéria era vivenciada como uma ilusão; a imagem, resultado de uma
observação, era vivenciada como uma realidade. A alma humana era repleta de imagens,
sentia-se parte do mundo espiritual. Nesta época, foram construídos os templos gregos com
proporções harmônicas, simplicidade geométrica e composições arquitetônicas exclusivamente
ortogonais. As paredes que os compõem são paralelas, os ângulos sempre retos. As colunas
enfileiradas são paralelas entre si. Dos espaços maiores para os menores, podemos observar
uma composição de retângulos e quadrados. Eram obras ricas, não só quanto à sua
arquitetura e proporções de elementos, mas também quanto aos detalhes esculturais e
pinturas de afrescos. O povo, no entanto, não tinha acesso ao templo, era um espaço
exclusivo para os sacerdotes que, dentro dele, colocavam-se em condição de fazer contato
com o mundo espiritual. Este espaço de pureza arquitetônica quase cristalina fez desabrochar,
incentivou e apoiou um processo na alma humana que levou o Homem a um pensar cada vez
mais lógico. A matéria toma lugar da realidade; a imagem é ilusão. É o primórdio da Lógica,
da Filosofia e da Ciência com Platão e Aristóteles. O templo tinha a função de apoiar este
processo de materialização no pensar, que desencadeou, mais tarde, o pensar intelectualizado
e racional. A alma abriu-se para a realidade terrena e, com isto, separa-se de sua origem
espiritual.
Passados muitos séculos, após o mistério do Gólgota em torno do ano 900 ao 1.200,
vemo-nos frente à época da construção das grandes catedrais. Primeiro as catedrais romanas,
posteriormente as catedrais góticas. A alma humana evoluiu no sentido de separação do
mundo espiritual. A partir daqui ela se relaciona separadamente com os dois mundos. A
natureza é o acesso ao mundo material e a religião é o vínculo com o mundo espiritual. Dá-se
a necessidade de se construir a ‘Casa de Deus’ – as catedrais, e é especificamente dentro
destes espaços que o povo evoca o mundo espiritual. Quais eram as características
arquitetônicas desta época? A planta baixa da catedral é de geometria ortogonal, com
elementos em forma de círculos no espaço destinado ao altar. A nave da catedral, espaço para
a permanência do povo, tem paredes paralelas, sendo marcantes as proporções no sentido
vertical. Das dimensões de altura resulta a monumentalidade, propiciando a devoção ao
mundo espiritual. A catedral marca a separação definitiva entre espírito e matéria. Dentro da
catedral, a devoção; fora dela, o trabalho na terra, a matéria. O pensar conquista a ciência e
torna-se cada vez mais intelectual.
O próximo passo nos leva à atualidade: o pensar humano conquistou a lógica e com ela
o pensar racional, e materializado, com controle praticamente absoluto das ciências naturais,
resultando na separação, cada vez mais evidente, dos conteúdos relacionados ao mundo
espiritual. A religião hoje, com um significado superficial, tornou-se um resíduo de algo que
teve seu ápice na época das construções das catedrais. Restringe-se, na maioria das
situações, a um veículo que pode proporcionar saúde, alegria e riqueza. Sua devoção decaiu,
limitando-se à busca de satisfações materiais.
Hoje, porém, uma pergunta se torna cada vez mais premente: como podemos
conseguir acesso ao conteúdo que está por trás da matéria, da forma, da idéia, da vida, sem
perder a conquista do pensar lógico e racional? O vínculo com o mundo espiritual não está
perdido. Neste ponto é importante reconhecermos a grande conquista da alma humana no
decorrer do tempo: o fortalecimento da individualidade. Quando na antiga Grécia, com o
pensar mitológico, predominava algo que poderíamos chamar de consciência grupal, iniciavase
juntamente com a lógica no pensar, a consciência presente do ente único. Na época da
construção das catedrais, esta consciência individual já tinha sido conquistada, mas o ato
religioso, na devoção ao mundo espiritual, acontecia na união das preces, com o povo unido
na catedral. Hoje, estamos sós, somos indivíduos e cabe a cada um a própria decisão de como
relacionar-se com o mundo espiritual. Uma decisão individual importa que deva ser tomada
em liberdade. Esta fase, no desenvolvimento da alma humana, nos leva à construção do
espaço em forma de trapézio, que teve sua realização inédita com o projeto de Rudolf Steiner
para o segundo Goetheanum em Dornach. Na época da Antiga Grécia, a alma humana
precisou de um espaço que fortalecesse as tendências abstratas e cristalizantes no pensar. O
Templo Grego despertou na alma o pensar lógico. A Catedral, por sua vez, foi um marco que
identificou a separação do mundo espiritual, na religião, do mundo material, no pensar lógico
e racional. O trapézio estabelece o limiar para o pensar vivo, para a consciência do ente
individual, a consciência do eu. Aplicado como planta-baixa para uma forma de espaço, o
trapézio pode ser considerado um marco na consagração do autoconhecimento, respeitando a
liberdade da individualidade em questão. Esta é a função genuína da Arquitetura
Antroposófica: proporcionar e incrementar à alma humana, que se encontra no auge da fase
materialista, um novo despertar no mundo espiritual.